09 setembro, 2009

O soldado de chumbo...


...não caíu da janela do quarto de uma criança, nem foi levado pelo curso de água num dia de chuva, como acontece nas estórias. O soldado de chumbo estava pousado a um canto, numa estante, ao lado de livros nunca lidos. O soldado de chumbo olhava em frente, para o cadeirão no canto oposto do quarto.

A boneca de trapos não foi oferecida por uma avó pasmada à sua neta predilecta, como acontece nas estórias. A boneca de trapos estivera desde sempre pousada no grande cadeirão a um canto do quarto. A boneca de trapos olhava em frente para a estante de livros nunca lidos. 

Os olhos da boneca de trapos eram botões de rosa que floresciam quando o sol da primavera espelhava no rosto do soldado de chumbo. Quando as nuvens carregavam o céu escuro e as paredes do quarto ficavam húmidas de tristeza infindável nos trilhos da esperança, não. O seu pobre coração de algodão ficava pequeno. As pétalas das rosas desprendiam-se e espalhavam-se pelo chão. Não podia mais vê-lo. O soldado de chumbo não compreendia. O seu coração era forte, alma de guerreiro. Sol e chuva eram iguais. O calor e o frio não o afectavam. Era de chumbo e não de trapos. A boneca de trapos tinha longas tranças de lã. Com o passar do tempo ficaram gastas. O soldado de chumbo tinha um chapéu de chumbo. Com o passar do tempo, nada mudou. O vestidinho da boneca de trapos era desbotado. Gravavam-se nele mãos de crianças em brincadeiras incautas mas de amor de verdade. O fato do soldado de chumbo mantinha-se igual. Gravavam-se nele apenas a solidão, uma dezena, ou duas, de anos, apenas pousado numa estante de livros nunca lidos. Somente a boneca de trapos o olhava quando era primavera. Era inverno e a janela do quarto não vedava completamente a passagem de correntes de ar. Era inverno e o sol não entrava pela janela. Era inverno e um sopro de melancolia de dias desesperados entrou no quarto e abanou a estante de livros nunca lidos. O soldado de chumbo vacilou. A boneca de trapos sentiu o coração de algodão encolher. O soldado de chumbo vacilou uma vez mais. O coração de algodão da boneca de trapos encolheu mais um pouco. O soldado de chumbo caíu no chão e partiu. Partiu do olhar da boneca de trapos sem que ela o pudesse ver. Era inverno e o seu coração estava pequeno. Mas quando vier a primavera, os botões de rosa voltarão a florescer

MariaPapoyla

3 comentários:

Galo disse...

Um conto lindo e uma mensagem de esperança.
Enquanto houver primavera...

Beijinho

S* disse...

Perder um soldadinho de chumbo assim, à nossa frente, sem nada fazer para o impedir, dói. Mas os botões de rosa voltam a crescer... sempre.

Rosa Negra disse...

Deslumbrante!Pela simplicidade, pela mensagem de esperança, pela realidade, por teres sido tu a escrever :)
Beijinho